Shiva o benévolo é conhecido como o “Senhor do tríplice tempo” (passado, presente e futuro) e sua personalidade apresenta-se extraordinariamente rica em contrastes. Ele é u ser devorador como Kala (o Tempo), mas também misericordioso em todas as suas ações (Shankar), sendo cultuado em todos os lugares como um principio universal de destruição com o intuito de renovação.
A arte hindu representa Shiva de muitas maneiras distintas. Como Adynatha, , mestre do Yoga, ele aparece em geral, com quatro braços; com as duas mãos superiores, sustenta um pequeno tambor (Damaru) e um tridente (Trishula, símbolo do tríplice tempo, Trikala) e com as outras duas, faz respectivamente, o gesto de doação (Vara Mudra) e o de segurança (Abhaya Mudra). No centro de sua testa, encontra-se um terceiro olho. Este olho frontal representa o “sentido da eternidade”. Segundo a tradição, um olhar desse terceiro olho reduz tudo a cinzas, destruindo toda a ilusão (Maya).
Shiva usa, sobre seu corpo, uma pele de tigre. Uma serpente serve-lhe de colar, outra, usa como cordão sagrado e outras duas estão enroladas nos braços, como braceletes. Seus cabelos são emaranhados e em forma de tranças, entre os quais leva a quinta cabeça de Brahma e a deusa Ganga. O veiculo de Shiva é o touro Nandi (símbolo de poder, força fecundidade; o touro está ligado ao culto da Grande Mãe, ao culto agrário da fertilidade e seu mugido é assimilado ao trovão e ao furacão).
Conta uma lenda: – Certa vez, Shiva visitou dez mil sábios heréticos com o objetivo de pregar-lhes a verdade. Os sábios o receberam-no com repulsa e maldições, mas, ao verem que isso surtia efeito algum evocaram um tigre terrível para devorá-lo. Shiva, sorrindo, levantou, com a unha de seu dedo mindinho, a pele do animal e pousou-a sobre os ombros como se fosse uma peça de seda.
Na continuação do episodio, os sábios suscitaram uma horrível serpente, mas Shiva colocou-a em seu colo como uma guirlanda. Por último, apareceu um anão negro que brandia como Gada (bordão de guerra), mas Shiva subindo em cima de suas costas, pós se a bailar harmoniosamente. Cansados por tanto esforço, os eremitas contemplaram-no em silencio, cativados pela magnificência e rapidez de seu maravilhoso ritmo; nesse momento, os céus se entreabriram e os deuses também puseram se a contemplar a dança de Shiva. Segundo a tradição, as danças de Shiva somam 108. Por meio de sua dança Nadanta,Shiva cria e destrói o universo. Essa dança simboliza a atividade divina como fonte responsável pelo dinamismo no universo, expressa as funções de criação cósmica, preservação, dissolução do véu da ignorância e a libertação desse ciclo interminável (Samsara). Em outra dança chamada Tandava, Shiva demonstra um bailado guerreiro com o qual desperta energias destrutivas e renovadoras que atuam também no sentido de libertar da ignorância.
Uma lenda conta que Shiva desenvolveu o estilo de dança Tandava quando lutava com um demônio que tinha adotado a forma de um poderoso elefante. Shiva forçou o adversário a dançar com ele, só parando quando esse caiu morto no solo. Logo após, Shiva esfolou-o e fez de sua pele um manto gotejante de sangue que ornamentava seu corpo enquanto continuava sua terrífica dança. Nesse episodio, Shiva é conhecido como Ghora, o irado. Nas imagens, ele aparece com um colar de crânios e carregando a pele de elefante. Em outras de suas mãos, Shiva leva um laço (Pasa), um aguilhão para guiar elefantes (Ankusa), uma das presas do elefante, um pequeno tambor (Damaru), um tridente (Trishula) e uma vasilha para pedir esmolas (Briksapatra).
Como Nataraja (o bailarino real), Shiva leva em sua mão direita superior o Damaru (símbolo do som portador da revelação, tradição e magia. O som é associado ao éter, a substância mais penetrante da manifestação primordial), com o qual marca o ritmo da dança cósmica. No lado oposto, na mão esquerda superior, cujos dedos formam uma meia lua (Ardha Chandra Mudra), Shiva mostra, na palma, uma língua de fogo (Tejas). O fogo é o elemento de destruição, de purificação e símbolo de renovação. As mãos superiores de Shiva ilustram o equilíbrio necessário aos opostos: uma incessante criação associada a uma constante destruição. É o elemento éter interagindo com o elemento fogo.
Com a segunda mão direita, Shiva Nataraja realiza o gesto “que desfaz o temor” (Abhaya Mudra). É um sinal para que seus seguidores não se deixem levar ao desespero pelo medo aos aspectos repelentes da manifestação, porque há uma finalidade na vida que foge, normalmente, ao conhecimento intelectual. A outra mão esquerda aponta para baixo, para o pé que se encontra erguido. Essa posição do pé indica a libertação (Moksha), isto é, a perda do contato com as paixões da vida psicofísica sensorial relativa.
O pé direito de Nataraja pisa sobre as costas de um anão-demônio conhecido como Apasmara Purusha, o qual simboliza a cegueira da vida, a ignorância que rege a vida mundana do ser humano. O anel de chamas (Prabha Mandala) que envolve Shiva representa o processo dinâmico do universo e de tudo que está inserido nele. Significa também a energia da sabedoria e do poder transcendente do absoluto. Os cabelos de Shiva longos e atrapalhados, representam a energia vital, responsável pelo poder da magia (Maya).
Conforme Coomaraswami 67, a dança de Shiva tem significado tríplice. Em primeiro lugar ela representaria o jogo rítmico como fonte de todo o dinamismo existente no cosmo. Em segundo, a finalidade da dança seria libertar os seres das armadilhas de Maya, a ilusão e ignorância. Em terceiro, indicaria que o local da dança é Chindambaram, o centro do universo, que se encontra no coração.
Shiva Nataraja também participa ativamente no processo de criação e preservação do universo. Para encerrar o mento de descanso cósmico (a noite de Brahma), em que a natureza se encontra inerte, Shiva sai de seu êxtase Yogi e, dançando, envia, pela matéria inerte as ondas vibratórias do som (Om), que faz despertar a vida. A matéria passa a dançar em torno de Shiva que, em seu harmônico bailado, auxilia a manter os múltiplos fenômenos e, em tempo certeiro, adotando um ritmo frenético, destrói, pelo fogo, todas as formas e nomes, para que haja um novo descanso.
Shiva também é conhecido como “Senhor da Natureza e dos Animais” (Pasupati). Nesse aspecto, ele é o protetor dos minerais, vegetais, animais e todos os outros reinos mundanos dos planos sutis. Shiva Pasupati criou os Vidyeshvaras (os mestres dos saberes) para servirem os protetores da natureza. Esses se manifestam como gênios das florestas, ninfas, sátiros, fadas, gnomos, etc.
Conforme Danielou 68, foi no período Neolítico e no começo da baixa Idade do Bronze que se cristalizou, entre os Dravidas, o culto de Pasupati e de Parvati (deusa das montanhas e esposa de Shiva). Trata-se de um grande movimento filosófico e religioso que, sob o nome de Shivaismo, vai se sobrepor ao animismo, herdado dos povos aborígenes do solo indiano (Nagas e Nishadas). Parece que, na pré-história indiana, Shiva (o benévolo) era chamado de Ann, nome também atribuído a uma deusa, cujo sentido ignora-se.
A responsabilidade de ser o deus da juventude e de todos os humildes também é atribuída a Shiva. Ele é acusado de ensinar os segredos do conhecimento aos Sudras (membros das casta mais inferiores) e de viver cercado de bandos de jovens delinqüentes que zombam das instituições e dos velhos governantes.
Shiva tem como símbolo o Lingam, arquétipo do órgão sexual masculino, representação da fertilidade e ícone da criação e da destruição rítmicas do universo. O Lingam relaciona-se ao culto dos mortos nas tribos aborígenes da Índia central, tendo como finalidade fixar a alma do afinado e procurar-lhe influenciar a fertilidade dos campos e impossibilitando-a de tornar errante e perigosa. Ao lado do Lingam sempre encontramos a Yoni, órgão sexual feminino, assimilado à porta para o mundo e à porta para a libertação do ciclo de renascimento e mortes individuais.
Diversos epítetos são dados a Shiva, entre eles: Adynatha, o primeiro mestre e criador do Yoga; Bhairava, o terrível senhor dos cemitérios e crematórios; Panchamana, o de cinco rostos; Rakshvara, o regenerador; Bhutamatha, o senhor dos espíritos; Vinadhara, o mestre da arte da música; Shankara, o renovador; Maheshvara, o glorioso, Bhuteshvara, o senhor dos duendes; Mritunjaya, o que vence a morte; Shrikanta, o de formoso pescoço; Gangadhara, o que leva o rio Ganges em sua cabeça; Digambara, o que anda nu; Nilakanta, o garganta azul; Ugra, o terrível; Nishichara, o que ronda à noite; Girisha, o senhor das colinas.
Fonte: OURSEL, Masson. Mitologia da Índia,– COOMARASWAMI, Ananda. The Dance of Shiva. In: MERTON, Thomas. Diário da Ásia, Belo Horizonte: Veja, 1978, – DANIELOU, Alain. Shiva e Dionísio
Compartilhe
Comments